sábado, 22 de dezembro de 2007

Natal de Jesus Cristo

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A xilogravura impressa na primeira coluna (a) do fólio 14 do nosso Flos sanctorum em linguagem português, acabado de imprimir em Lisboa, por Hermão de Campos & Roberto Rabelo, a 15 de Março de 1513, no início da ‘legenda’ intitulada “Do nasçimento de nosso senhor Jhesu christo” (f. 13 d), representa a cena do parto virginal de Jesus. Esta passa-se num estábulo, ao ar livre, só com uma cobertura de madeira e colmo, o tugúrio debaixo do qual se encontra a manjedoura junto da qual estão a asna e o boi. A razão de ser da presença dos dois animais é dito no texto[1] inspirar-se em dois textos não canónicos:
Agora vos queremos dizer outra razã deste nascimento que achamos en ho liuro que fez santiago ho menor[2]: que foy bispo de jherusalem. & en outro liuro que chamã dos nazarenos[3]: & dizem assy. Que quando se hyã joseph & sancta maria por aquella estrada que hia de na-zared pera bethleem leuauã com sigo huum boy pera vender pera pagar aquella peita: & huũ[sic] asna em que hya sancta maria (...) & fez entrar sancta maria em hũa daquellas couas na mays escura & mais temerosa que hy estaua & nõ auia hy lume nenhuum. E entonçe como entrou sancta maria foy loguo ally tã grande a craridade como se ally esteuesse ho sol ao meyo dia quando he mays craro. (...) a virgem sancta maria: em tanto pario ella sen door nem trabalho nenhuum. & assy nasçeeo della seu filho nosso senhor jhesu christo deos & homem verdadeyro: & ella nõ ho sentio senã quando ella vyo ante sy: naado ho minino: & ficou ella virgem como era dantes. E esto por muytos pro-phetas foy profetizado os quaaes souberõ a poridade de deos. (...) E diz agora aquelle euangelho de sam lucas que despoys que sancta maria pario seu filho. que ho enuolueo em huns panezinhos & o pos em hũa manjadoyra. & aquella manjadoyra era huum pouco longa & a huum cabo della comia ha asna em que andaua sancta maria & ho boy ao outro. (...) E como paryo porque nõ achou lugar mays molle poseo em huum pouco de feno enuolto em huuns panos & ho boy & a asna como ho sentirõ leyxarõlhe toda a manjadoyra & tirarõse a fora & abayxarõ as cabeças atee a terra adorando. & esto da asna & do boy foy assy feyto porque se comprisse ha propheçia que muyto tempo antes dissera o propheta jsayas. que escreueo esta pallaura. Conheçeo ho boy cujo era & ha asna a manjadoyra do seu senhor [Is 1,3]. E outro propheta que ouue nome abacuh escreueo esta outra propheçia. Em meyo de dous animaes sera conhecido [Hab 3,2 [4]]. & esto nos diz o euangelho.” (Flos Sanctorum de 1513, ff. 14 c – 15 a, negrito e itálico meus)

Contrariamente ao texto, que fala de uma cova, a cena passa-se no pátio de um estábulo, ao ar livre, mas de acordo com uma tradição iconográfica iniciada no séc. XV com o chamado ‘estilo internacional’, o Menino está deitado no chão do pátio, com um nimbo à volta da cabeça e auréola envolvendo o corpo[5], já que, segundo as visões místicas de Santa Brígida, todo Ele irradiava luz.[6]

Este tipo de imagens ilustra o momento do parto da Virgem Maria, de acordo com as Revelações de Santa Brígida da Suécia, compostas à volta de 1360-70 [7]: a Virgem, com os cabelos soltos sobre os ombros, adora, de joelhos, o Menino Jesus. Este, nuzinho, está colocado no chão, espargindo raios de luz (“iacentem in terra nudum et nitidissimum[8]). Sentado, abençoa com a dextra. A Virgem Sua mãe, com os cabelos soltos apanhados por uma fita com uma jóia sobre a testa [9] e a cabeça cercada por um nimbo, contempla-O ajoelhada. Quanto a José, não tem a cabeça nimbada; genuflecte e segura uma vela com a mão direita, enquanto a esquerda protege a chama do vento. Uma estrela se ergue no céu por sobre a cabeça do patriarca, alusiva ao episódio da visita dos Magos [Mt 2, 9b].
Segundo Réau[10], a primeira representação da Natividade de Cristo de acordo com as Revelações de Santa Brígida encontra-se numa pintura mural a fresco, existente na igreja dominicana de Santa Maria Novella, em Florença, da autoria de Piero di Miniato, datando de finais do séc. XIV [11]. Nesta imagem, outros personagens adoram também de joelhos o Menino Deus recém-nascido: S. José, que cruza os braços sobre o peito, e inclusive a vaquinha e a burrinha (veja-se o nosso texto: “ho boy & a asna como ho sentirõ leyxarõlhe toda a manjadoyra (...) abayxarõ as cabeças atee a terra adorando”). Atrás de S. José vê-se uma santa mulher em traje de viúva, também adorando de joelhos e mãos postas – seguramente Santa Brígida. A cena passa-se numa gruta, segundo o modo de representar na iconografia bizantina (e que o nosso texto também recolhe: “& [José] fez entrar sancta maria em hũa daquellas couas na mays escura & mais temerosa que hy estaua & nõ auia hy lume nenhuum.”)
Na Península Ibérica, encontraremos também a figuração de Santa Brígida da Suécia numa entalhadura impressa em Saragoça, na oficina de Paulo Hurus [12], primeiro em 1495 no livro de Martín Martínez de Ampiés, Triunfo de María. Amores de la Madre de Dios [13]; e depois em 1498, no fólio 71 (k5) a da edição castelhana do livro de Bernardus de Breidenbach, deão de Mogúncia, Viage dela Tierra Sancta (traduzido pelo autor do livro anterior, Martín Martínez de Ampiés), acabado de imprimir em Saragoça, por Paulo Hurus, a 16 Janeiro 1498 [14]. Kurz [15] identifica a cena como “Anbetung der Eltern und Salome (?)”, sendo a interrogante bem justificada.
Podemos ver uma origem remota da nossa xilogravura em imagens flamengas e de modo particular no painel central do ‘Retábulo de Peter Bladelin’, obra documentada começada a pintar por Rogier van der Weyden, a óleo sobre madeira, não muito depois de 1452 [16], e que hoje se encontra na Gemäldegalerie, do Berlin-Dahlem Museum [17]. Temos no nosso país uma pintura flamenga da Natividade (40,8x32,2 cm.), não documentada, datável pelos especialistas dos anos subsequentes a 1440, mas com nítida afinidade com a do retábulo de Bladelin, como o reconheceu Pedro Dias [18]. Esta tábua pintada pertenceu seguramente a uma instituição religiosa portuguesa, e conserva-se hoje no MNAA, com o Inv. nº 1243 [19]. Terão estas duas pinturas flamengas um protótipo comum? [20] Não é aqui o lugar para aprofundarmos esta questão.
Neste campo, com traço muito simplificado, mas por isso mesmo muito legível, encontramos uma representação muito semelhante à destas pinturas, mas com o Menino colocado no chão, numa estampa da Biblia Pauperum em alemão
[21], impressa em Bamberg, por Albrecht Pfister, por volta de 1462, no verso do fólio 1 [22] e reestampada pelo mesmo impressor, pensa-se que no ano seguinte, na edição latina do mesmo livro[23]. Nesta estampa vemos praticamente todos os elementos da nossa, menos a paisagem e a estrela. A Senhora tem as mãos postas voltadas para cima, ao contrário da nossa que, como nos quadros, as tem voltadas para baixo; e sobre os ombros tem um manto, ausente da nossa estampa, tal como no retábulo Bladelin de Rogier van der Weyden.
Vemos, pois, por este entre outros exemplos, como os modelos iconográficos viajavam, não estando vinculados a um texto.


Texto publicado, em parte: num artigo incluído no nº 21 da revista Cultura[24]. Texto total pubicado no nº 165 (Dez. 2006) do TRAÇO de UNIÃO, pp. 3-7.

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[1] Diferente do da Legenda Áurea do Beato Fr. Jacopo da Varazze O.P., e possivelmente da autoria de Fr. Gauberto Fabricio de Vagad O.Cist.
[2] Trata-se do Proto-Evangelho de Tiago, um apócrifo ortodoxo (ou seja, não gnóstico ou esotérico).
[3] Certamente, o chamado Evangelho do Pseudo Mateus, outro apócrifo ortodoxo, de grande voga no Ocidente medieval – vd. Aurelio de SANTOS OTERO, Los Evangelios Apócrifos (col. B.A.C. 148), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2003 (10ª ed.) (ISBN 84-7914-044-5), pp. 171-172.
[4] Na versão dos LXX ou Septuaginta.
[5] Ver distinção entre Nimbo, Auréola e Glória no artigo do [Pe.] Fausto S[anches] MARTINS [C.Ss.R.], “Aspectos polémicos dos painéis de S. Vicente: Ritual e iconografia”, in Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Universidade do Porto, Porto (ISSN 1645-4936), vol. II (2003), pp. 267-290, esp. pp. 271-278.
[6] C[arlos] A[lberto] Ferreira de ALMEIDA, O Presépio na Arte Medieval [Separata da revista Arqueologia, Porto, nº 6 (Dez. 1982), pp. 137-151: "Iconografia do Presépio Medieval"], Porto, Instituto de História de Arte, Faculdade de Letras do Porto, 1983 (Col. Iconografia I), p. 4/[138] b.
[7] Erwin PANOFSKY, Los Primitivos Flamencos, Madrid, Cátedra, DL 1998 (ISBN 84-376-1617-4), p. 52.
[8] Revelationes de Santa Brígida da Suécia, VII, 21 [apud Ibidem].
[9] A mesma forma de apanhar os cabelos pode ver-se, por exemplo: na imagem do Natal da Biblia Pauperum de ca. 1462, como a seguir refiro [Fig.e]; e na representação de Santa Eulália no Retablo de la Virgen de los Consejeros, realizado por Luís Dalmau em 1445, e conservado no Museo Nacional de Arte de Cataluña [Vd. Gaston DUCHET-SUCHAUX & Michel PASTOUREAU, Guía iconográfica de la Biblia y los santos, Madrid, Alianza Editorial, 2001 (1ª ed., 2ª reimpr.) (ISBN 84-206-9478-9), p. 161].
[10] Louis RÉAU, Iconografía del arte cristiano, Barcelona, Ediciones del Serbal, 1996-2000 (1ª ed.) (ISBN 84-7628-164-1) [6 vols.: Introducción general, 2000; tomo 1 - Iconografía de la Bíblia, 1996 (vol. 1- Antiguo testamento, vol. 2 - Nuevo testamento); tomo 2 - Iconografía de los santos, 1997-98 (vol. 3 - De la A a la F, vol 4 – De la G a la O, vol. 5 - De la P a la Z)], t. 1/ vol. 2, p. 237.
[11] Ver reprodução em: Stefano ORLANDI & Isnardo P[io] GROSSI, Santa Maria Novella e i suoi Chiostri Monumentali, Firenze, Edizioni S. Becocci, post. 1983, fig. 4, p. 9.
[12] Ver reprodução em: Francisco VINDEL, El Arte Tipográfico en España durante el siglo XV, Madrid, Ministerio de Asuntos Exteriores, Dirección General de Relaciones Culturales, 1945-51, vol. IV, p. 267//5.
[13] Cf. Martin KURZ, Handbuch der iberischen Bilddrucke des XV. Jahrhunderts, Leipzig, Karl W. Hiersemann, 1931, p. 123, cat. nº 77, 43.
[14] Cf. M. KURZ, 1931 (nota 13), p. 55, cat. nº 248, 7; Pedro TENA TENA, “Los grabados del Viaje de la Tierra Santa (Zaragoza, 1498)”, in Boletín de Museo e Instituto «Camón Aznar», 81, 2000, pp. 219-241, esp. p. 231.
[15] M. KURZ, 1931 (nota 13), loc. cit. nota 19.
[16] E. PANOFSKY, 1998 (nota 7), p. 273).
[17] Ver reprodução em: Jacques LASSAIGNE, La Pinture Flamande. Le Sècle de Van Eyck, [Genève], Éditions d’Art Albert Skira, le 15 septembre 1957, p. 93.
[18] P[edro] D[IAS], “Natividade”, in No Tempo das Feitorias, 1992, vol. I, cat. nº 1, p. 116 (onde refere, como Bibliografia, o livro a seguir referido nesta nota). Em 1967 (in Marie-Léopoldine LIEVENS-DE WAEGH, Les Primitifs Flamands - Lisbonne I: Le Musée National d’Art Ancien et le Musée National des Carreaux de Faïence de Lisbonne, vol. I, Bruxelles: s.ed. [Soporcel, mecenas], 1991, p. 39 e p. 44, nº 6), Ignace Vandevivere, professor na Universidade Católica de Lovaina, atribuía-lhe a data de finais do séc. XV.
[19] P. D[IAS] – Ibidem (nota 18). Ver reprodução em: No TEMPO das FEITORIAS. A Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1992, 2 vols. (ISBN 972-95775-0-1), vol. I, p. [117]].
[20] M.-L. LIEVENS - DE WAEGH [1991 (nota 18), p. 33] afirma que “Sans en copier la composition, cette Nativité reprend, en les inversant, des motifs iconographiques de celle di retable Bladelin de Van der Weyden”.
[21] Ver reprodução em: Walter L. STRAUSS (ed. geral), The Illustrated Bartsch, [New York], Abaris Books, <© 1979-2001>, vol. 80, p. 41, fig. 1462/57 (Schramm 1.170).
[22] Albert SCHRAMM, Der Bilderschmuck der Frühdrücke (begründet von Albert Schramm, fortgeführt von der Kommission für den Gesamtkatalog der Wiegendrucke), Leipzig, 1920-1923 & Stuttgart, Hiersemann, 1924-1943 (23 vols.), nº 1.170.
[23] W. STRAUSS (ed. geral), The Illustrated Bartsch (nota 21), vol. 80, p. 54.
[24] Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa (IIª Série) (ISBN 0870-4546), vol. XXI (2005). O artigo em questão intitula-se: “Desencontros entre texto e imagem ‘ilustrativa’, no Flos Sanctorum de 1513”, pp. 45-64. A parte incluída neste ‘paper’ vem nas páginas 52 a 55.

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