sábado, 22 de dezembro de 2007

Os Pastores no Presépio de Belém

Anúncio aos pastores. Fs 1513, fólio 15 b.


Os Flores Sanctorum, apesar do seu nome significar Florilégio de Santos, incluíam também comentários ao evangelho. É este o caso “Do euangelho pastores loquebantur Luc. secundo capitulo.[1]” No fólio 15 b do Flos Sanctorum de 1513,[2] uma estampa (88x58 mm.), ladeada por tarjas, ilustra o comentário a esta perícope evangélica. Como acontecia com o texto relativo ao Nascimento de Jesus Cristo [3], o presente texto não provém da Legenda Áurea do Beato Tiago de Vorágine O.P.
O nosso texto começa por citar, abreviadamente, a perícope evangélica proclamada na Missa da Aurora do dia de Natal:
“[P]Astores loquebantur ad inuicem[4] dicentes. Transeamus vsque ad bethleem & videamus hoc verbum quod factum est. &c [quod dominus ostendit .&c.[5] nobis. Et venérunt festinántes: et invenérunt Maríam, et Joseph, et infántem pósitum in praesépio. Vidéntes autem cognovérunt de verbo, quod dictum erat illis de púero hoc. Et omnes, qui audiérunt, miráti sunt: et de his, quae dicta erant a pastóribus ad ipsos. María autem conservábat ómnia verba haec, cónferens in corde suo. Et revérsi sunt pastóres glorificántes, et laudántes Deum in ómnibus, quae audíerant, et víderant, sicut dictum est ad illos.[6]].
Em seguida recolhe, da perícope anteriormente proclamada na Missa da Meia-Noite, a referência aos pastores e ao anúncio que lhes é feito pelo Anjo: Diznos sam matheus[sic][7] no euangelho que quando veo ho tempo que ouue de nasçer jhesu christo nosso senhor na çidade de bethleem. erã pastores naquella regiõ que guardauã gaados: & aa ora que nosso senhor jhesu christo nasçeo: logo estes pastores ouuirõ cantar os anjos que cantauam & louuauã a deos aquella noyte em que elle nasçeo: & ho cantar era este. Gloria in excelsis deo: (Fs 1513, f. 15 b)

É este o momento recolhido pela estampa ilustrativa, na qual o Anjo, de que é apresentado o busto alado sobre o segmento de uma glória estilizada, sustenta uma filactéria, onde se lê: “Gloria in excelsis Deo.”


São figurados somente dois pastores. O da direita, genuflectindo, toca uma gaita-de-foles com a mão esquerda, enquanto aponta para o Anjo com a direita. Por cima deste pastor, vêem-se no monte umas ovelhas pastando. O companheiro, figurado de costas, segura na mão esquerda o cajado tradicional com ponta em forma de colher ou pá[8], enquanto protege com a direita os olhos, gesto iconográfico tradicional para denotar que o personagem em questão vê uma grande claridade[9]. À sua esquerda, vemos casas espalhadas pelo monte, decerto querendo representar a cidadezinha de Belém. No primeiro plano vê-se, da esquerda para a direita, um cantil, feito de uma cabaça, pendurado num arbusto, um prato fundo e uma colher, e um pequeno odre de vinho (chamado em castelhano “bota”).
Não achei, nos Flores Sanctorum posteriores, nenhuma ilustração referente a este tema, habitual nos ‘Livros de Horas’. Será este um indício de que muitas das imagens reproduzidas neste livro foram criadas para ilustrarem ‘Livros de Horas’?[10]

De notar que, neste comentário, o texto do hino angélico, que é referido como tradução do texto evangélico latino, não é somente o do Evangelho (que coloquei em itálico), mas o hino completo cantado na Liturgia:
Gloria in excelsis deo: & in terra pax hominibus bone voluntatis. &c. que quer dizer. Gloria & louuor seja dada a deos poderoso nos altos çeeos & em a terra paz aos homens de boa voontade. A ty louuamos & a ty benzemos. a ty adoramos. a ty glorificamos. Graças te damos polla tua grande gloria. senhor deos rey çelestryal deos padre poderoso en todas as cousas. Senhor jhesu christo huum filho soomente gerado: senhor deos. Cordeyro de deos. Filho de deos padre que tiras os pecados do mundo lenbrate de nos. Tu que tiras os pecados do mundo reçebe nossos regos[sic[11]] & petições. Tu que te assentas a destra de deos padre: aue merçee de nos pecadores. Ca tu soo es sancto. tu, soo es senhor: tu soo es ho mays alto. Jhesu christo cõ ho espirito sancto na gloria de deos padre amẽ.” (Fs 1513, f. 15 b-c)
Aliás, este hino litúrgico foi composto inicialmente para ser cantado na Missa da noite de Natal, tendo sido posteriormente alargado o seu uso às outras missas festivas.

O texto evangélico, tanto do Anúncio do Anjo aos pastores como da ida destes últimos ao presépio, é de seguida comentado através de um conjunto de explicações alegóricas, introduzidas pelo convite Considerae amigos os cantares & duçuras desta noyte. Primeiro vem o significado dos anjos:Os anjos que cantã significã os douctores da sancta ygreja.
Segue-se a explicação das trevas nocturnas em que a cena se passa:A noyte em que naçeo jhesu christo que era em treeua significa este mundo que estaua em treeua que atee que elle naçeo todas as almas hyam em treeuas: assy as dos boos como as dos maaos”. - Alusão ao Limbo dos Pais.
Curiosa, na sequência da afirmação anterior, é a explicação das três missas de Natal:Ca as tres missas que se dizi[sic]em este dia significã tres tempos conuem a saber huum ante da ley: & outro des que foy dada a ley: & outro he este em que agora estamos que he dicto tempo de graça."[12] Ante Legem:Ha missa que se diz aa meya noyte significa o tempo de antes que ha ley fosse dada. porque eram todos em treeuas & nom sabyã quando faziã mal nem quando faziã bem: & eram todos perdidos”. Sub Lege:Ha missa que se canta aa alua significa ho tempo da ley & dos mandamentos que ja os poouos hyam sayndo de treeuas: ca deantes nom sabiam nem conheçiã nada. E de hy adiante souberom & conheçerõ deos; ca fallou deos com elles & muytos anjos que lhe mandou. mas por esso ley de deos nõ os escusou de hyr ao inferno.Sub Gratia:Ha missa que se canta de dia significa o tempo de graça porque neste tempo nos fez deos bem & faz cada di. Ca despoys que naçeeo jhesu christo somos alumiados & craros & por esta rezam he dicto tempo de graça.
Finalmente, o significado dos pastores, que, como é natural numa explicação alegórica, remete para os pastores da Igreja:A significaçã dos pastores que vellã segundo diz ho euangelho esto he amoestaçã aos christaãos a que tenham cuydado .s. rectores curas & capellaães da ygrejas: que soõ pastores dos seus pouoos em sancta gloria: ca deuem vellar & gurdar[sic] seu pouoo & pregarlhe & amoestralhe em maneyra que o lobo que he diaboo nõ leue seus[sic] ouelhas que he ho pouoo cujos pastores & guardores elles som. Ca os pouoos dos christa-[f. 15 d]ãos sam emcomendados aos prelados & capelaães da madre sancta ygreja.

Comentando a perícope evangélica da Missa da Aurora, mais explicações alegóricas:
E diziã aquelles pastores huns aos outros. Transeamus vsque ad bethleem. que quer dizer passemos atee bethleeem & vejamos esto que os anjos disserom & veremos que cousa he de jhesu christo que dizẽ que he naçido. E diz ho euangelho que vierõ muy asynha & aa pressa. significa que sem nenhũa detença vamos a confessar nossos pecados. & venhamos a penitençia: & da maa vida venhamos a boa. E assy como elles passarom aa pressa. assi nos da a emtender que deuemos de hyr a jhesu christo por boa via & por boas obras quanto mays podemos." - É o momento de passar à exortação moral e ao convite à recepção do sacramento da penitência.
A explicação etimológica do nome da cidade de Belém, dá ensejo a uma alusão à Eucaristia e à igreja onde a reserva eucarística é guardada: Bethleem quer tanto dizer como casa de pam. olly[sic] onde naçeeo jhesu christo: em outro tempo foy chamada eufrata. que quer dizer çidade de grande avondamento & polla grande auondança que nelle avia le pos jacob nome bethleem. Este bethleem significa ha ygreja: que he dicta casa de pam. Honde diz ho euangelho que disse jhesu christo: eu som pã verdadeiro que do çeeo desçendi.[13]
Jesus é apresentado como exemplo de humildade:E quando os pastores chegarom a bethleem acharõ a sancta maria & a joseph & a jhesu christo infante pequena[sic] enuolto em pannos villes: & posto na manjadoyra. Estaua jhesu christo emuolto em pannos vijs por nos dar enxempro que nõ amemos nem prezemos grandes pompas nem riquezas deste mundo:, Ele que é Nosso Senhor:& jazia na manjodayra[sic] que he gouerno das bestas: significa que elle he nosso gouerno & nossa vida: a qual nos nã podemos auer senã por elle.
A nova referência aos pastores, dá novo ensejo a falar dos prelados, e os admoestar a serem bom pastores do rebanho que lhes foi confiado:Estes pastores que vierom a nosso senhor jhesu christo: & o nã quiserom emcobrir: significa os prelados & gouernadores das ygrejas: nã deuẽ emcobrir os sacramentos de deos nẽ os seus feytos: mas deuẽ preegar & confessar & amoestar seus pouoos por que conheçã a deos.
A atenção volta-se agora para Nossa Senhora, a mãe do Salvador: Maria autem conseruabat omnia verba hec conferens in corde suo. Esto diz que sançta[sic] maria gardaua[sic] todas estas pallauras em seu coraçam: que cuydaua em ho fecto de jhesu christo que sabya que era deos verdadeyro filho de deos & que por elle auya ho mundo de seer saluo: & ella ho cuydaua muy bem em seu coraçõ.
A última frase dá ensejo a falar da Salvação trazida por Jesus Cristo na Sua incarnação, morte e glória, da qual nos quer fazer participantes: "E[t] reuersi sunt pastores laudantes & glorificantes deum. Diz que estes [f. 16 a] pastores como virõ jhesu christo naçido & forõ çertos delle tornarõ se alegres louuando & benzendo a deos. E nos assi deuemos de fazer como os pastores: benzer & louuar: & glorificar o nome de deos verdadeiro jhesu christo que naçeo en tal nocte como esta: que elle que he ygual do padre na verdade: & se quis abayxar por nos ha tomar nossa carne. na qual tomou morte & payxã por nos saluar que elle nos liure de poder de nossos jmijgos E deuemos melhorar nossas vidas & hõrrar ho seu naçimento: que sejamos en amor & caridade: por que mereçamos hyr aa sua gloria.
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Texto publicado em: TRAÇO DE UNIÃO, nº 169 (Dez. 2007), pp. 8-12.


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[1] Na Leyenda de los Santos da British Library (LsBL), [Burgos, Juan de Burgos, 1499?], f. XIX b, diz somente: “Del euangelio pastores loquebantur”. Não tem ilustração.
[2] Flos Sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo, 1513 (Fs 1513).
[3] Ver TRAÇO de UNIÃO - Boletim do Dominicanos - Portugal, nº 165, pp. 3-7.
[4] Na LsBL, f. XIX b, o texto evangélico tem as palavras colocadas noutra ordem: “[A]d invicem loquebantur pastores”.
[5] A citação é mais completa em LsBL, f. XIX(.c.iij) b-c.
[6] Completei a citação a partir do texto do Evangelho proclamado na Missa da Aurora (Lc 2, 15-20).
[7] aliás Lucas, com é referido no título, na versão portuguesa. Em LsBL, f. XIX c, existe o mesmo erro: “Dizenos sant matheo”. O comentário refere-se Lc 2, 8-14 - a segunda parte do Evangelho proclamado na Missa do Galo (Lc 2, 1-14).
[8] Ver a este propósito, embora posterior, a porta do sacrário da capela da Via Sacra, em Viseu - António José de ALMEIDA, Retábulos Maneirista e Barrocos em Viseu (trabalho de Seminário de História da Arte orientado pelo Dr. Flávio Gonçalves), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1976-77 (inédito), p. 29; Maria de Fátima EUSÉBIO, “A iconografia do sacrário da Capela da Via Sacra de Viseu”, in Actas do II Congresso Internacional do Barroco, Porto, DCTP-FLUP, 2003, pp. 495-496.
[9] Veja-se, por exemplo, o caso da representação da Transfiguração, como refiro num meu artigo, publicado na revista Brotéria, Lisboa (ISSN 0870-7618), vol. 142, nº4 (Abril 1996), pp. 413-424: Fr. António José de Almeida OP, “Metamorfose do olhar”.
[10] A descrição desta estampa xilográfica é tomada da minha tese de Doutoramento em História da Arte, orientada pelo Pe. Prof. Doutor Fausto Sanches Martins CSsR, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Fr. António-José de ALMEIDA OP, IMAGENS DE PAPEL. O 'Flos Sanctorum em linguagem português', de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário OP - A problemática da sua ilustração xilográfica, Porto, [Texto policopiado], 2005, IIIª parte, 3.1/3.
[11] por ‘rogos’.
[12] Ver a divisão da História Sagrada em: Louis RÉAU, Iconografía del arte cristiano, Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996-2000 (1ª ed.) (ISBN 84-7628-164-1. 6 vols.): tomo 1 - Iconografía de la Bíblia, 1996 (vol. 1- Antiguo testamento, vol. 2 - Nuevo testamento).
[13] Ver a este propósito a minha tese de Mestrado em História da Arte, orientada inicialmente pelo Prof. Doutor Artur Nobre de Gusmão e depois pelo Prof. Doutor Vítor Serrão, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: Fr. António José de ALMEIDA O.P., «Imagines Sacrae» no Convento de São Domingos de Benfica, Lisboa, [Texto policopiado], 1999, I vol., pp.128-131: “O Natal e a Eucaristia”.

Natal de Jesus Cristo

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A xilogravura impressa na primeira coluna (a) do fólio 14 do nosso Flos sanctorum em linguagem português, acabado de imprimir em Lisboa, por Hermão de Campos & Roberto Rabelo, a 15 de Março de 1513, no início da ‘legenda’ intitulada “Do nasçimento de nosso senhor Jhesu christo” (f. 13 d), representa a cena do parto virginal de Jesus. Esta passa-se num estábulo, ao ar livre, só com uma cobertura de madeira e colmo, o tugúrio debaixo do qual se encontra a manjedoura junto da qual estão a asna e o boi. A razão de ser da presença dos dois animais é dito no texto[1] inspirar-se em dois textos não canónicos:
Agora vos queremos dizer outra razã deste nascimento que achamos en ho liuro que fez santiago ho menor[2]: que foy bispo de jherusalem. & en outro liuro que chamã dos nazarenos[3]: & dizem assy. Que quando se hyã joseph & sancta maria por aquella estrada que hia de na-zared pera bethleem leuauã com sigo huum boy pera vender pera pagar aquella peita: & huũ[sic] asna em que hya sancta maria (...) & fez entrar sancta maria em hũa daquellas couas na mays escura & mais temerosa que hy estaua & nõ auia hy lume nenhuum. E entonçe como entrou sancta maria foy loguo ally tã grande a craridade como se ally esteuesse ho sol ao meyo dia quando he mays craro. (...) a virgem sancta maria: em tanto pario ella sen door nem trabalho nenhuum. & assy nasçeeo della seu filho nosso senhor jhesu christo deos & homem verdadeyro: & ella nõ ho sentio senã quando ella vyo ante sy: naado ho minino: & ficou ella virgem como era dantes. E esto por muytos pro-phetas foy profetizado os quaaes souberõ a poridade de deos. (...) E diz agora aquelle euangelho de sam lucas que despoys que sancta maria pario seu filho. que ho enuolueo em huns panezinhos & o pos em hũa manjadoyra. & aquella manjadoyra era huum pouco longa & a huum cabo della comia ha asna em que andaua sancta maria & ho boy ao outro. (...) E como paryo porque nõ achou lugar mays molle poseo em huum pouco de feno enuolto em huuns panos & ho boy & a asna como ho sentirõ leyxarõlhe toda a manjadoyra & tirarõse a fora & abayxarõ as cabeças atee a terra adorando. & esto da asna & do boy foy assy feyto porque se comprisse ha propheçia que muyto tempo antes dissera o propheta jsayas. que escreueo esta pallaura. Conheçeo ho boy cujo era & ha asna a manjadoyra do seu senhor [Is 1,3]. E outro propheta que ouue nome abacuh escreueo esta outra propheçia. Em meyo de dous animaes sera conhecido [Hab 3,2 [4]]. & esto nos diz o euangelho.” (Flos Sanctorum de 1513, ff. 14 c – 15 a, negrito e itálico meus)

Contrariamente ao texto, que fala de uma cova, a cena passa-se no pátio de um estábulo, ao ar livre, mas de acordo com uma tradição iconográfica iniciada no séc. XV com o chamado ‘estilo internacional’, o Menino está deitado no chão do pátio, com um nimbo à volta da cabeça e auréola envolvendo o corpo[5], já que, segundo as visões místicas de Santa Brígida, todo Ele irradiava luz.[6]

Este tipo de imagens ilustra o momento do parto da Virgem Maria, de acordo com as Revelações de Santa Brígida da Suécia, compostas à volta de 1360-70 [7]: a Virgem, com os cabelos soltos sobre os ombros, adora, de joelhos, o Menino Jesus. Este, nuzinho, está colocado no chão, espargindo raios de luz (“iacentem in terra nudum et nitidissimum[8]). Sentado, abençoa com a dextra. A Virgem Sua mãe, com os cabelos soltos apanhados por uma fita com uma jóia sobre a testa [9] e a cabeça cercada por um nimbo, contempla-O ajoelhada. Quanto a José, não tem a cabeça nimbada; genuflecte e segura uma vela com a mão direita, enquanto a esquerda protege a chama do vento. Uma estrela se ergue no céu por sobre a cabeça do patriarca, alusiva ao episódio da visita dos Magos [Mt 2, 9b].
Segundo Réau[10], a primeira representação da Natividade de Cristo de acordo com as Revelações de Santa Brígida encontra-se numa pintura mural a fresco, existente na igreja dominicana de Santa Maria Novella, em Florença, da autoria de Piero di Miniato, datando de finais do séc. XIV [11]. Nesta imagem, outros personagens adoram também de joelhos o Menino Deus recém-nascido: S. José, que cruza os braços sobre o peito, e inclusive a vaquinha e a burrinha (veja-se o nosso texto: “ho boy & a asna como ho sentirõ leyxarõlhe toda a manjadoyra (...) abayxarõ as cabeças atee a terra adorando”). Atrás de S. José vê-se uma santa mulher em traje de viúva, também adorando de joelhos e mãos postas – seguramente Santa Brígida. A cena passa-se numa gruta, segundo o modo de representar na iconografia bizantina (e que o nosso texto também recolhe: “& [José] fez entrar sancta maria em hũa daquellas couas na mays escura & mais temerosa que hy estaua & nõ auia hy lume nenhuum.”)
Na Península Ibérica, encontraremos também a figuração de Santa Brígida da Suécia numa entalhadura impressa em Saragoça, na oficina de Paulo Hurus [12], primeiro em 1495 no livro de Martín Martínez de Ampiés, Triunfo de María. Amores de la Madre de Dios [13]; e depois em 1498, no fólio 71 (k5) a da edição castelhana do livro de Bernardus de Breidenbach, deão de Mogúncia, Viage dela Tierra Sancta (traduzido pelo autor do livro anterior, Martín Martínez de Ampiés), acabado de imprimir em Saragoça, por Paulo Hurus, a 16 Janeiro 1498 [14]. Kurz [15] identifica a cena como “Anbetung der Eltern und Salome (?)”, sendo a interrogante bem justificada.
Podemos ver uma origem remota da nossa xilogravura em imagens flamengas e de modo particular no painel central do ‘Retábulo de Peter Bladelin’, obra documentada começada a pintar por Rogier van der Weyden, a óleo sobre madeira, não muito depois de 1452 [16], e que hoje se encontra na Gemäldegalerie, do Berlin-Dahlem Museum [17]. Temos no nosso país uma pintura flamenga da Natividade (40,8x32,2 cm.), não documentada, datável pelos especialistas dos anos subsequentes a 1440, mas com nítida afinidade com a do retábulo de Bladelin, como o reconheceu Pedro Dias [18]. Esta tábua pintada pertenceu seguramente a uma instituição religiosa portuguesa, e conserva-se hoje no MNAA, com o Inv. nº 1243 [19]. Terão estas duas pinturas flamengas um protótipo comum? [20] Não é aqui o lugar para aprofundarmos esta questão.
Neste campo, com traço muito simplificado, mas por isso mesmo muito legível, encontramos uma representação muito semelhante à destas pinturas, mas com o Menino colocado no chão, numa estampa da Biblia Pauperum em alemão
[21], impressa em Bamberg, por Albrecht Pfister, por volta de 1462, no verso do fólio 1 [22] e reestampada pelo mesmo impressor, pensa-se que no ano seguinte, na edição latina do mesmo livro[23]. Nesta estampa vemos praticamente todos os elementos da nossa, menos a paisagem e a estrela. A Senhora tem as mãos postas voltadas para cima, ao contrário da nossa que, como nos quadros, as tem voltadas para baixo; e sobre os ombros tem um manto, ausente da nossa estampa, tal como no retábulo Bladelin de Rogier van der Weyden.
Vemos, pois, por este entre outros exemplos, como os modelos iconográficos viajavam, não estando vinculados a um texto.


Texto publicado, em parte: num artigo incluído no nº 21 da revista Cultura[24]. Texto total pubicado no nº 165 (Dez. 2006) do TRAÇO de UNIÃO, pp. 3-7.

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[1] Diferente do da Legenda Áurea do Beato Fr. Jacopo da Varazze O.P., e possivelmente da autoria de Fr. Gauberto Fabricio de Vagad O.Cist.
[2] Trata-se do Proto-Evangelho de Tiago, um apócrifo ortodoxo (ou seja, não gnóstico ou esotérico).
[3] Certamente, o chamado Evangelho do Pseudo Mateus, outro apócrifo ortodoxo, de grande voga no Ocidente medieval – vd. Aurelio de SANTOS OTERO, Los Evangelios Apócrifos (col. B.A.C. 148), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2003 (10ª ed.) (ISBN 84-7914-044-5), pp. 171-172.
[4] Na versão dos LXX ou Septuaginta.
[5] Ver distinção entre Nimbo, Auréola e Glória no artigo do [Pe.] Fausto S[anches] MARTINS [C.Ss.R.], “Aspectos polémicos dos painéis de S. Vicente: Ritual e iconografia”, in Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Universidade do Porto, Porto (ISSN 1645-4936), vol. II (2003), pp. 267-290, esp. pp. 271-278.
[6] C[arlos] A[lberto] Ferreira de ALMEIDA, O Presépio na Arte Medieval [Separata da revista Arqueologia, Porto, nº 6 (Dez. 1982), pp. 137-151: "Iconografia do Presépio Medieval"], Porto, Instituto de História de Arte, Faculdade de Letras do Porto, 1983 (Col. Iconografia I), p. 4/[138] b.
[7] Erwin PANOFSKY, Los Primitivos Flamencos, Madrid, Cátedra, DL 1998 (ISBN 84-376-1617-4), p. 52.
[8] Revelationes de Santa Brígida da Suécia, VII, 21 [apud Ibidem].
[9] A mesma forma de apanhar os cabelos pode ver-se, por exemplo: na imagem do Natal da Biblia Pauperum de ca. 1462, como a seguir refiro [Fig.e]; e na representação de Santa Eulália no Retablo de la Virgen de los Consejeros, realizado por Luís Dalmau em 1445, e conservado no Museo Nacional de Arte de Cataluña [Vd. Gaston DUCHET-SUCHAUX & Michel PASTOUREAU, Guía iconográfica de la Biblia y los santos, Madrid, Alianza Editorial, 2001 (1ª ed., 2ª reimpr.) (ISBN 84-206-9478-9), p. 161].
[10] Louis RÉAU, Iconografía del arte cristiano, Barcelona, Ediciones del Serbal, 1996-2000 (1ª ed.) (ISBN 84-7628-164-1) [6 vols.: Introducción general, 2000; tomo 1 - Iconografía de la Bíblia, 1996 (vol. 1- Antiguo testamento, vol. 2 - Nuevo testamento); tomo 2 - Iconografía de los santos, 1997-98 (vol. 3 - De la A a la F, vol 4 – De la G a la O, vol. 5 - De la P a la Z)], t. 1/ vol. 2, p. 237.
[11] Ver reprodução em: Stefano ORLANDI & Isnardo P[io] GROSSI, Santa Maria Novella e i suoi Chiostri Monumentali, Firenze, Edizioni S. Becocci, post. 1983, fig. 4, p. 9.
[12] Ver reprodução em: Francisco VINDEL, El Arte Tipográfico en España durante el siglo XV, Madrid, Ministerio de Asuntos Exteriores, Dirección General de Relaciones Culturales, 1945-51, vol. IV, p. 267//5.
[13] Cf. Martin KURZ, Handbuch der iberischen Bilddrucke des XV. Jahrhunderts, Leipzig, Karl W. Hiersemann, 1931, p. 123, cat. nº 77, 43.
[14] Cf. M. KURZ, 1931 (nota 13), p. 55, cat. nº 248, 7; Pedro TENA TENA, “Los grabados del Viaje de la Tierra Santa (Zaragoza, 1498)”, in Boletín de Museo e Instituto «Camón Aznar», 81, 2000, pp. 219-241, esp. p. 231.
[15] M. KURZ, 1931 (nota 13), loc. cit. nota 19.
[16] E. PANOFSKY, 1998 (nota 7), p. 273).
[17] Ver reprodução em: Jacques LASSAIGNE, La Pinture Flamande. Le Sècle de Van Eyck, [Genève], Éditions d’Art Albert Skira, le 15 septembre 1957, p. 93.
[18] P[edro] D[IAS], “Natividade”, in No Tempo das Feitorias, 1992, vol. I, cat. nº 1, p. 116 (onde refere, como Bibliografia, o livro a seguir referido nesta nota). Em 1967 (in Marie-Léopoldine LIEVENS-DE WAEGH, Les Primitifs Flamands - Lisbonne I: Le Musée National d’Art Ancien et le Musée National des Carreaux de Faïence de Lisbonne, vol. I, Bruxelles: s.ed. [Soporcel, mecenas], 1991, p. 39 e p. 44, nº 6), Ignace Vandevivere, professor na Universidade Católica de Lovaina, atribuía-lhe a data de finais do séc. XV.
[19] P. D[IAS] – Ibidem (nota 18). Ver reprodução em: No TEMPO das FEITORIAS. A Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1992, 2 vols. (ISBN 972-95775-0-1), vol. I, p. [117]].
[20] M.-L. LIEVENS - DE WAEGH [1991 (nota 18), p. 33] afirma que “Sans en copier la composition, cette Nativité reprend, en les inversant, des motifs iconographiques de celle di retable Bladelin de Van der Weyden”.
[21] Ver reprodução em: Walter L. STRAUSS (ed. geral), The Illustrated Bartsch, [New York], Abaris Books, <© 1979-2001>, vol. 80, p. 41, fig. 1462/57 (Schramm 1.170).
[22] Albert SCHRAMM, Der Bilderschmuck der Frühdrücke (begründet von Albert Schramm, fortgeführt von der Kommission für den Gesamtkatalog der Wiegendrucke), Leipzig, 1920-1923 & Stuttgart, Hiersemann, 1924-1943 (23 vols.), nº 1.170.
[23] W. STRAUSS (ed. geral), The Illustrated Bartsch (nota 21), vol. 80, p. 54.
[24] Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa (IIª Série) (ISBN 0870-4546), vol. XXI (2005). O artigo em questão intitula-se: “Desencontros entre texto e imagem ‘ilustrativa’, no Flos Sanctorum de 1513”, pp. 45-64. A parte incluída neste ‘paper’ vem nas páginas 52 a 55.